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O INIMITÁVEL AGENTE DO SAMBA QUE NASCEU EM REALENGO (RJ)

























O INIMITÁVEL AGENTE DO SAMBA QUE NASCEU EM REALENGO (RJ)

O nosso gênero musical mais difundido no mundo é o samba. O samba ao nascer na Bahia (referência mais aceita) e, em seguida, rumar para todo o Brasil trouxe à nação uma agregação musical relevante. Por isto, e em razão de que o seu nascimento foi espontâneo não se pode dizer quem o inventou. Em assim sendo e a partir daí, em vão, inúmeras pessoas tentaram sintetizar, decodificar, explicar, interpretar e mais, converter o samba em regras simplistas para se praticar e estabelecer um procedimento palpável com a finalidade de se ter o domínio sobre ele e de tudo o que ele tem a oferecer. Não foi e nem será possível isto. O samba é soberano. Mesmo tendo se espalhado pelo mundo, as pessoas não se dão conta de que o samba não faz concessão. Se o músico não tocar como ele quer, a denúncia é estampada na hora.

No samba, a marcação do tempo forte é e sempre será no primeiro tempo do compasso, claro, sem acentuação (é o que João Gilberto faz por ter observado esta prática no jazz). Não adianta fazer marcação forte no segundo tempo do compasso como se faz em outros gêneros musicais. Se assim o músico proceder, o que é comum, o samba claudicará e aí será outra coisa, menos samba. Para se tocar samba, é sine que non ter a sua permissão. Permissão esta que é dada à pessoa que ficará subordinada à condição de súdito. Nada além. Samba é samba. O samba não requer sobrenome. Não é possível adjetivá-lo. Não tem como fragmentá-lo ou fracioná-lo. O samba não pode ser visto como uma repartição pública com suas unidades, subunidades e respectivos setores. É um erro imperdoável caso não seja obedecido este princípio inelutável.

Após infindáveis anos de estudo sobre o gênero, observei que entre os poucos músicos escolhidos para serem súditos, havia um que se distinguia desses poucos e ele era uma figura que mais se assemelhava a um anjo. Músico extremamente doce. De um candor sem par e com uma conduta musical e moral singular. Quase sempre calado, mas com um semblante que transmitia tranquilidade e generosidade. Esse anjo chamado Daudeth Azevedo teve como codinome simplesmente Neco. Ele tinha plena consciência de que entendia de samba e pleno domínio na execução do samba. Com Neco o samba se mostrou mais amplo. Mais horizontal. Mais flexível e com muito mais outras possibilidades. A sua divisão rítmica era invejável com utilização de uma harmonia muito coerente e bem fornida. Sua mão direita não utilizava e nem sobrevivia de harpejo. Tocava ao mesmo tempo, graciosamente, com todos os dedos da base de sua mão direita. Conceituo que divisão rítmica, tanto para Neco quanto para João Gilberto, é o nome correto que se tem que dar para a denominação desacertada de “batida”. Nenhum dos dois agride o violão. Isso é para Baden Powell e seus seguidores que nunca foram sambistas.

Daudeth Azevedo, homem com um pouco mais de 1,60m de altura, ao empunhar seu violão tornava-se um gênio gigantesco. Ele era incomparável. Certa vez numa reunião de amigos aqui em Brasília, uma determinada pessoa se identificou como irmão do Geraldo Vespar, disse-me que na opinião do seu irmão, o Neco foi o melhor violonista/guitarrista que aparecera no Rio de Janeiro. Curiosamente me disse que o seu nome também era Geraldo e que todos os seus irmãos foram registrados com o mesmo nome - Geraldo. Neco que mais se parecia a um anjo, passou por aqui e não foi notado tal era sua singeleza e sutileza. Isto se deve também ao fato dele ser extremamente modesto e ter aceitado ser um agente de confiança do samba. Foi um verdadeiro mensageiro leal desprovido de vaidade. Por ser tão simples e corajoso, Neco me falou com muita naturalidade das dicas que Nestor Campos (este mais injustiçado ainda) passou pra ele. Somente o Neco teria coragem de dizer isto.

Concernente a violonistas, para o universo do samba apareceram dois geniais violonistas intérpretes: Daudeth Azevedo (Neco) e João Gilberto. Esses dois gênios são contemporâneos (não se encontraram pessoalmente) e tiveram em comum a dedicação exclusiva ao samba. Não importa o tema do gênero musical que os dois executem em seus violões nas gravações, a questão cerebral, de propósito, fala mais alto e tudo vira samba. Valsa vira samba. Jazz vira samba. Baião virá samba e por aí vai. Não existe estatística para o que noticio, todavia, penso que, tranquilamente, Neco participou de gravações de mais ou menos 600 discos. Deixou registrado fonograficamente a sua maravilhosa personalidade musical. De modo prático, afirmo que Neco gravou o melhor e mais importante disco produzido neste país. O irônico é que ele me disse que não ganhou um tostão por conta do disco. Os arranjos ficaram a cargo do também genial Nelsinho do Trombone. O disco é de 1966 e foi gravado exclusivamente para o mercado inglês, se chama “Velvet Bossa Nova”. É o que há de melhor e mais expressivo referente a samba. É uma verdadeira obra de arte.

Vale alertar que, o disco Chega de Saudade - do João Gilberto, sua notoriedade se deu especificamente no tocante à revelação de um novo cantor extraordinário e de um violonista inovador que inventou para o samba uma original maneira para tocá-lo. Considero que a abordagem implementada por João Gilberto ao violão nesse disco e nos dois posteriores permanece ainda inédita tal é sua importância. Esse ineditismo alcança também ao próprio João Gilberto visto que depois dos três primeiros discos gravados no Brasil não mais conseguiu reproduzir aquele exuberante e extraordinário trabalho paradigmático. Há muito eu já havia me dado conta disto e, provavelmente, João Gilberto não teve a mesma percepção. A vida impôs a ele esta cilada e, consequentemente, o melhor mesmo foi ficar em casa e fazer pouquíssimos shows já que ele é extremamente vaidoso. O fenomenal artista acabou por se transformar em dois personagens diferentes que lhe causou uma crise de identidade entre o que ele foi e o que é. Ainda assim, ninguém harmoniza tão bem uma música como João Gilberto. Ninguém conseguiu tirar isso dele (nem ele mesmo), mas sua execução ao violão posterior aos três primeiros discos não mais foi possível constatar.

O primeiro disco do João Gilberto tornou-se clássico exclusivamente por conta dele e não pelos arranjos que Tom Jobim elaborou ou mesmo pelos músicos partícipes. Aliás, em todas as faixas desse disco se nota mais a presença determinante do violão como condutor do que pelos arranjos creditados ao Tom Jobim. Sem falar que a gravação técnica no estúdio foi muito inferior em relação a outros discos que naquele período foram gravados na ODEON.

Já o disco “Velvet Bossa Nova” não padece dessas falhas e nem de outras. É um disco acabado. Não tem como retocá-lo. Foi relançado em CD e se encontra fora de catálogo. Ao adquirir o CD do “Velvet Bossa Nova” impressionou-me o fato de que um jornalista desinformado confeccionou a ficha técnica completamente errada. Retirou nomes de músicos que participaram e colocou outros que não participaram da gravação. Só não retirou o nome do Neco porque na capa está escrito “Neco's guitar and the Ipanema Strings”. Se assim não fosse, mais uma vez, Neco teria sido descartado. A arrogância desse dublê de jornalista foi grande visto que nessa época o Neco morava na Tijuca (RJ). Bastaria um telefonema para a residência dele e a informação sairia correta. O Neco me disse que os músicos participantes da gravação foram: Arranjos: Nelsinho do Trombone; Violão e arranjos: Neco (Daudeth Azevedo); Piano: Zequinha Marinho: Bateria: Wilson das Neves; Contrabaixo Acústico: Luiz Marinho: Flauta: Meireles. Nesse contexto, Neco foi campeão em ter seu nome omitido na maioria dos discos em que participou.

Nesses discos o seu violão foi capaz de dar maior expressão às gravações que se por ventura o ouvinte pudesse retirá-lo, o contexto sonoro seria outro e causaria estranheza que poderia pensar que estaria incompleto. Inscrevo neste texto que, se de um lado João Gilberto (músico muito específico) e Neco (músico polivalente que tocou de tudo e com todos) foram capazes de inventar um novo jeito de tocar samba ao violão; por outro lado, o luthier - Sr Romeu Di Giorgio foi o italiano genial que, desde 1908, havia inventado a personalíssima e inigualável sonoridade para violão brasileiro que, muito tempo depois, o samba encontrou seu melhor amparo sonoro.

Tive que deixar por derradeiro o Sr Romeo Di Giorgio, não por ser menos importante, para reverenciar essa personalidade que por ser também grandiosa está no nível de criatividade do Neco e João Gilberto. Ele é o terceiro vértice do triângulo de gênios que lamentavelmente os músicos brasileiros, estrangeiros, compositores, jornalistas, escritores e apreciadores do samba nem sabem que existiu. Esses três notáveis continuarão e permanecerão ignorados, por conseguinte, injustiçados. 

Com a invenção do violão Di Giorgio Author nº 3, pelo Seu Romeu Di Giorgio, foi possível registrar fonograficamente uma sonoridade definida, agradável, clara, cheia, melodiosa, bela, grave e harmoniosa que se tem notícia. Tanto isto é verdade que esse instrumento quando deixou de ser utilizado em gravações, rapidamente o movimento bossa nova desapareceu.

O Di Giorgio Author nº 3 exerceu um papel diferenciador com grande expressão e não permitiu sua substituição. O pior é que isto até hoje ninguém percebeu ou se deu conta. Infelizmente, muito se alardeou que outros dois instrumentos, piano e bateria, foram destaques maiores do que o violão, em particular, para o movimento bossa nova, isto é uma argumentação que não tem sustentação e é completamente refutável. Basta raciocinar um pouquinho e perceber que a partir do momento em que todos os músicos brasileiros consagrados, inclusive João Gilberto, passaram a utilizar outros tipos de violões, suas identidades sonoras desapareceram e o movimento ruiu em definitivo. Piano e bateria não conseguiram preencher o vazio deixado pelo violão Di Giorgio Author nº 3 que João Gilberto utilizou pioneiramente nas gravações dos primeiros discos e que também foi utilizado largamente por todos os outros músicos.

Isto se tornou consenso e o som do movimento bossa nova estava patenteado É muito oportuno falar que, o som das outras duas marcas: Del Vechio e Giannini não eram iguais, apenas se assemelhava ao do Di Giorgio. Interessante também é perceber que a excepcional invenção do Sr Romeu Di Giorgio não foi utilizada somente em samba, todos os outros estilos musicais no Brasil daquela época se serviram do instrumento. Mesmo com toda essa importância, ainda assim, o Sr Romeu Di Giorgio não pôde atender ao pedido heterodoxo (carta escrita ao Reinaldo Proetti) do multifalado maestro Tom Jobim (não conheço nenhuma orquestra que ele tenha conduzido), que fabricasse um violão Di Giorgio climatizado para os Estados Unidos. Como isto seria possível?

Por último, há de se levar em conta de que o que escrevi é o meu entendimento pessoal e é um pequeno introito a um tema que ainda é desconhecido neste país. País este que tem um Ministério da Cultura, mas seus representantes não sabem diferenciar “entretenimento” de “cultura”. É a vida. Até de repente se Deus assim permitir.

Niromar Fernandes (www.myspace.com/niromar) Brasília (DF). 20.4.2011.




London LLB 1006 - 1966


Aproveitem!

1. Minha Namorada (Carlos Lyra / Vinicius de Moraes)

2. Insensatez (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)

3. Saudade da Bahia (Dorival Caymmi)

4. A Felicidade (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)

5. Água De Beber (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)

6. Manhã de Carnaval (Luiz Bonfá / Antônio Maria)

7. Chuva (Durval Ferreira / Pedro Camargo)

8. Chove Lá Fora (Tito Madi)

9. Maria Ninguém (Carlos Lyra)

10. Preciso Aprender a Ser Só (Marcos Valle / Paulo Sergio Valle)

11. Reza (Edu Lobo / Ruy Guerra)

12. Meditação (Tom Jobim / Newton Mendonça)













 Para ouvir agora: "Chuva" de Durval Ferreira e Pedro Camargo


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